Desculpe a bagunça

R. F.
4 min readJan 13, 2023

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Faz dois dias que Mariana não dorme. Excesso de café ou aquela multa de trânsito. pra ser sincero, eu não sei. Observo seu revirar na cadeira do bar e me angustio. Mais um dia guardando meu impulso de querer resolver problemas alheios no bolso.

- Já imaginou como seria o mundo se todos parássemos pelo menos 10 minutos pra meditar?

- Todo mundo teria controle?

- Não dá pra saber, mas ao menos alguma mudança teria. Não é possível que uma parada com tanta evidência científica não fizesse uma diferença em escala assim.

- Utópico. Gosto quando você trás essas ideias pra mesa do bar, mas mais ainda quando divide comigo.

Ela levantou e me beijou. Dali mesmo pedimos mais 2 litrões. Hoje em dia qualquer bar perto do metrô cobra uma fortuna e as vezes deixa a gente na mão com o litrão. Mas não ali. Esse bar existe há anos e é a alegria dos boêmios da cidade. Você vê de tudo. De briga de universitário a idoso jogando RPG. A energia é sempre caótica, mas tem algo que lembra casa, não sei explicar.

Eu e Mariana começamos a frequentar o lugar depois que passamos a nos ver com mais frequência. No começo, uma vez a cada 15 dias quando dava. Nos dias em que eu tinha aula de inglês e minha esposa não desconfiaria. Depois a frequência aumentou. Não sei dizer o que aconteceu. Eu amanheci um dia ao lado de Mariana e percebi que ela estava chorando. Um choro que me fez querer chorar também. Entrei em choque, não consegui dizer uma palavra, só a abracei e em silêncio permiti que as lágrimas rolassem. Foi libertador.

Minutos depois conversamos. Papo de expectativas, tempo perdido, uma caralhada de coisas que se pensa. Do meu lado eu tinha o plus: a culpa e a conveniência de um relacionamento longo. Não é que eu não amasse minha mulher, eu só não a desejava mais como antigamente. Tentei comunicar isso inúmeras vezes ao longo dos anos, como se algo precisasse reviver ali junto com a gente. Mas não há nada pior do que viver sozinho um problema a dois. O peso se torna mais seu do que do outro.

Então todas as ideias inovadoras, a terapia e o que quer que acontecesse era um esforço meu, porque ela parecia estar confortável demais de qualquer maneira. E aí vieram os silêncios, aqueles longos silêncios seguidos de dias bons, quase um vestígio do que tínhamos no passado. Era ela de volta? Era a gente? Até agora eu não sei.

Talvez eu devesse por em prática a clássica frase “os incomodados que se retiram?” — mas preferi empurrar.

Aí então chegou Mariana e tudo mudou. Eu devo ter mentido, mas a verdade é que no momento em que a vi pensei que queria beija-la. Ela falava sorrindo, empolgada? Acho que sim. Deu um banho em tudo que era triste em mim. Problemas no trabalho? Que? Me conte mais sobre o que você fez na situação X. E a tentativa de não demonstrar (por que mesmo a gente faz isso?) Ela, porém, sem medo algum, perguntava interessada sobre a minha área, função, rotina. Tudo. Logo eu que sempre me achei prolixo encontrei alguém bem pior.

- Tô falando demais, né? Tô perguntando muito?

Aí veio a sensação esquisita de me sentir invadido e vulnerável. Ela faz isso com as pessoas. Pergunta tudo com curiosidade, é como se tivesse sede de conhecer você e saber o que você pensa.

- Tá frio, né? Vamos?

- Sim, bora de saideira?

- Certo. Me fala uma coisa… O que você acha de mim?

- Você sabe o que eu acho de você.

- Mais ou menos, diz aí.

- Acho que você é legal, linda, inteligente, me faz querer me desligar um pouco dos problemas, me faz refletir sobre as coisas, se mostra interessada no mundo. Acho isso lindo.

- Entendi. Vamo?

A mistura de praticidade, aleatoriedade e delicadeza. Eu nunca poderia me ver aqui e, ainda assim, é exatamente aqui que estou. Penso na minha mulher, se ela também tem uma Mariana ou alguém assim por perto. Desejo que tenha.

Chego em casa decidido a ter a conversa mais dura que se pode ter. É a senhora morte que visita a nossa casa. Abro a porta do quarto e conto tudo: da minha angústia aos erros. Choro abraçado com ela. Vivemos juntos o começo, sentimos juntos o fim. Olho para a casa que construímos, a história que vivemos e não me arrependo de nada, só de um dia não ter tido a coragem de ir embora antes. Talvez também exista amor na despedida. Eu sinto que tem.

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R. F.

jornalista e psicóloga. das colagens, dos livros, da comunicação e do povo.