A primeira lição

R. F.
3 min readFeb 22, 2023

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Era terça-feira de Carnaval e Alice brincava de boneca com as amigas no pátio do condomínio. Observando com cautela, qualquer um era capaz de enxergar os restos de glitter misturados com as roupinhas e panelas pelo chão. Ela dividia o turno dos cuidados da melhor boneca com sua amiga Estela. O fluxo seguia normalmente.

De longe, vinha Salo, um menino mais velho, pentelho e desajeitado. Correu tanto que esbarrou em dona Geralda.

- Cuidado, moleque, vai me derrubar!

Ele pareceu não ligar e caminhou em direção à paz da casinha montada por Alice e a amiga, com birimbinhas e confetes – o prenúncio do caos.

Alice sentia, à distância, o fim se aproximando. Mordeu os lábios e começou a juntar discretamente parte dos brinquedos. O desespero vindo à tona.

Salo se aproximou com o olhar de quem planejava um golpe terrível. Foi diminuindo os passos com as mãos pra trás, olhou para os lados e pulou no lar que ganhou vida através da brincadeira da menina. Pisou primeiro na cabeça da bebê, desencaixando o corpinho rapidamente. Logo mostrou o segredo nas mãos. Eram os confetes misturados com terra. Sem pensar muito, jogou para o alto e, num só pulo, abandonou a boneca e saiu correndo.

Tudo foi tão rápido que Alice processou a violência apenas passados alguns segundos. Quando se deu conta, sentiu seu corpo ser tomado por uma tristeza profunda, um nó na garganta que se desfez em lágrimas.

Chorou pelo luto da boneca, da casa, da fantasia e, mais ainda, por se sentir pequena diante da brutalidade do inimigo.

Voltou pra casa desolada e, ali encontrou o irmão mais velho. Contou aos prantos sua dor. Ele saiu como um furacão. Por algum momento Alice pensou que a justiça existia, que o mundo não era o lugar do improvável apenas, mas da redenção. Foi atrás.

De longe ouviu o irmão conversando com Salo, que pareceu envergonhado, com a cabeça baixa. “É isso!” – pensou! Em seguida, uma risada, duas. Como assim? Salo pegou a bola e eles começaram a jogar. Era sobre Alice ou sobre Salo? Subiu cada degrau até o apartamento expirando fúria, entrou no banho e esperou. “Talvez eu tenha entendido errado.”

Quando o irmão subiu foi falar com ela e sentiu o sangue pulsando em todo seu corpo. Ele o defendia. Ele, irmão de Alice, defendia um menino aleatório que fez mal a ela, que destruiu sua boneca preferida, sua brincadeira, seu clima. Rindo, debochou da importância que dera a tudo aquilo. Papo que meninas, em geral, são chatas e meninos precisam se unir.

A dor era tão grande que não conseguiu dizer nada. Naquele dia, não quis comer – nem mesmo a sobremesa. Na cama, à noite, pensou o que havia feito de errado. Relembrou, passo a passo, o acontecimento e seguiu sem entender.

No dia seguinte, no churrasco com a família, encontrou tia Sônia. Ela morava sozinha, diferente de todos os tios e tias, não era casada e nem queria ser. Gostava de andar de bicicleta, de dar aula, ver documentários e de tomar cerveja.

Alice sentou na mesa com tia Sônia, que bebia sua cervejinha enquanto fumava um cigarro. Olhou ao redor, aguardou alguns momentos até decidir que quebraria o silêncio. Ali contou tim-tim por tim-tim do ocorrido com pose de culpada. A essa altura do campeonato a inadequação já lhe cabia como uma luva.

A tia ouviu tudo atentamente, pensou por alguns segundos e respondeu.

- Os homens, Alice, se defendem o tempo todo – até mesmo nas injustiças. Você vai viver muitas situações em que vai se sentir inadequada e injustiçada (e com razão), mas nada disso é sua culpa. Essa é sua lição número 1 sobre ser mulher. E sabe, já que eles se defendem, talvez nossa missão seja nos manter cercadas de outras mulheres que nos lembrem disso que estou te lembrando agora. Sempre que você precisar pode contar comigo.

Chegando em casa, depois do banho Alice foi para o quarto, pegou sua melhor caneta, o caderninho de anotações, e escreveu:

os homens se defendem sempre, mas isso não é minha culpa. Ficar ao lado de mulheres para não esquecer que não é minha culpa.

Fechou com o cadeado, guardou na caixa dos segredos e deitou desconfortável na cama. Pensou: homens se defendem. A raiva invadiu seu corpo e ficou acordada a noite toda.

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R. F.

jornalista e psicóloga. das colagens, dos livros, da comunicação e do povo.